sábado, 23 de março de 2013


Tão perto, tão longe: Adoniran Barbosa e Cartola. Fotos: CEDOC FPA/Reprodução

NO BIXIGA COMO NA MANGUEIRA

As semelhanças entre Adoniran Barbosa e Cartola e seus mundos




http://albumitaucultural.org.br/secoes/no-bixiga-como-na-mangueira/
# Publicada originalmente na Revista Continuum de jan-fev de 2010
Nomes consagrados da música brasileira, Cartola e Adoniran Barbosa cantaram dois universos que ainda hoje vivem e sambam de modos distintos. A vida desses músicos centenários (ou quase) foi diferente, mas surpreendentemente parecida em alguns aspectos. Eles eternizaram em suas canções cenas cotidianas e histórias que são como flashes de um Brasil em industrialização. Cartola, negro carioca, retratou os morros do Rio de Janeiro; Adoniran, paulistano de origem italiana, revelou ao país o bairro do Bixiga, em São Paulo.
Meninos criados em pobrezas semelhantes, Cartola nasceu Angenor, no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, em 1908. Aos 10 anos, mudou-se para o Morro da Mangueira por causa de problemas financeiros da família. Adoniran nasceu João em 1912, no interior paulista de Valinhos, e acompanhou a família em busca de melhoras financeiras por Jundiaí, Santo André e finalmente São Paulo. Aos 10 anos, sua certidão de nascimento foi alterada para 1910. Dessa forma, pôde começar a trabalhar.
A necessidade de trabalho levou os dois músicos a abandonar a escola cedo e percorrer longas trajetórias no mercado, antes de se firmar como compositores.
Cartola foi pedreiro, ofício em que usava um chapéu-coco para se proteger do cimento, o que lhe rendeu o apelido. Tipografista, vigia noturno, lavador de carros, contínuo, zelador e dono de boteco (o mítico bar Zicartola) foram outras de suas profissões. Tentou a sorte na rádio. Além do samba, viveu predominantemente de bicos.
Adoniran foi entregador de marmitas, ofício no qual aprendeu matemática subtraindo bolinhos para matar a fome. Pintor, encanador, tecelão e metalúrgico foram outras de suas profissões. Tentou a sorte como ator e cantor. Além do samba, fez carreira como humorista de rádio, e só na Record trabalhou por mais de 30 anos.
Os dois sambistas deixaram registrada participação no cinema.

A mulher amada
Na vida amorosa, também traçaram trajetórias simétricas. O primeiro casamento curto, e a descoberta da companheira que tiveram ao lado até o fim da vida no segundo matrimônio. Cartola com Euzébia, a Dona Zica, e Adoniran com Matilde.
Para Zica, Cartola compôs o samba-canção “Nós Dois”, que celebra a união do casal.
“Seremos felizes depois
Nada mais nos interessa
Sejamos indiferentes
Nós dois, apenas dois
Eternamente”
Para Matilde, Adoniran compôs, com Oswaldo França, “Joga a Chave”, que transformou em piada um incidente do casal.
“Joga a chave meu bem
Aqui fora tá ruim demais
Cheguei tarde perturbei teu sono
Amanhã eu não perturbo mais”
Já senhores, no mesmo ano de 1974, os dois gravaram o primeiro LP da carreira. Seguiram com mais quatro discos e um relativo êxito tardio, que permitiu um fim de vida tranquilo, mas distante da abastança.
O operário e o malandro
Ouvir Cartola e Adoniran é revisitar dois contextos urbanos e mergulhar em muitos dos seus costumes. Entre um breque e outro, vê-se o mesmo Rio de Janeiro boêmio e a mesma São Paulo apressada dos dias de hoje. Vê-se a alegria de cantar a favela em que se vive ou a agonia de uma ordem de despejo.
“Habitada por gente simples e tão pobre
Que só tem o Sol que a todos cobre
Como podes, Mangueira, cantar?”
“Sala de Recepção” (Cartola)
“Quando o oficial de justiça chegou lá na favela
E contra seu desejo entregou pra seu Narciso
Um aviso pra uma ordem de despejo
Assinada seu doutor, assim dizia a petição,
Dentro de dez dias quero a favela vazia
E os barracos todos no chão.
É uma ordem superior”
“Despejo na Favela” (Adoniran Barbosa)
Vê-se um chamado ao amor para ficarem juntos até amanhecer e a pressa da despedida de quem não pode perder o último trem.
“É impossível nesta primavera, eu sei
É impossível, pois longe estarei
Mas pensando em nosso amor, amor sincero
Ai! se eu tivesse autonomia
Se eu pudesse gritaria
Não vou, não quero”
“Autonomia” (Cartola)
“Não posso ficar nem mais um minuto com você
Sinto muito, amor, mas não pode ser
Moro em Jaçanã
Se eu perder esse trem
Que sai agora às onze horas
Só amanhã de manhã”
“Trem das Onze” (Adoniran Barbosa)
Vê-se um operário paulistano e um malandro carioca, ou o inverso. Como a malandragem mal-sucedida narrada por Adoniran no samba “No Morro do Piolho”, cuja autoria assina com o pseudônimo de Peteleco, em parceria com Carlos Silva e Jacob de Brito:
“Me elegeram para ser governador
Lá do Morro do Piolho
Onde eu sou fundador
Por muitos votos eu ganhei a eleição
Pra ver se eu fui eleito
Por panela de pressão
A Pafuncinha foi quem se admirou
- Como é que esse malandro teve a consagração?”
Ou ainda a injusta vida do trabalhador, revelada por Cartola em “O Samba do Operário”, que compôs com Alfredo Português e Nelson Sargento:
“Se o operário soubesse
Reconhecer o valor que tem seu dia
Por certo que valeria
Duas vezes mais o seu salário
Mas como não quer reconhecer
É ele escravo sem ser
De qualquer usurário”
O avesso do avesso
Mas, se os estereótipos atribuídos pelo imaginário popular são um Rio de Janeiro leve e alegre ante uma São Paulo resmungona e infeliz, Cartola e Adoniran, de certa forma, os inverteram, sendo o compositor carioca quase sempre mais triste e melancólico e o paulista geralmente mais bem-humorado e divertido. Assim, Cartola é mais lembrado pelo lirismo e Adoniran pela sátira.
Para o jornalista Pedro Alexandre Sanches, autor de Tropicalismo: Decadência Bonita do Samba (Boitempo, 2000), entre coincidências e disparidades, os sambistas se complementam. “Eles fizeram da identidade de origem um dos elementos centrais da suas obras. Mas a coincidência máxima, acredito, é virem de famílias humildes. Como é comum em quem vem dos estratos mais baixos da sociedade, nada foi fácil para eles, nunca, e prova disso é a demora na consolidação e no reconhecimento no ofício de sambistas”, observa.
Poeta e músico do grupo Cordel do Fogo Encantado, Lirinha é morador de São Paulo e escolhe a trilha sonora de Adoniran para sua experiência. “Enquanto um chama a mulher que ama de ‘minha romântica senhora tentação’, o outro diz para ela ter cuidado ao atravessar a rua. Identifico-me mais com a fala de Adoniran, o jeito que ele canta horário, pressa, pressão, carro, metrô, elevador, trabalho”, observa.
Nascido em Niterói, o músico Marcos Sacramento já gravou Adoniran e Cartola e destaca que são artistas que contrastam em diversos aspectos para se encontrarem no samba. “Identifico neles tanto contrastes quanto identidades. Acho que os dois sofreram profunda influência do meio social onde viveram e seguiram caminhos diferentes, mas se encontraram no samba, como na parceria de Adoniran com Vinicius de Moraes ‘Bom Dia Tristeza’ (‘Se chegue, tristeza/Se sente comigo/Aqui, nesta mesa de bar/Beba do meu copo/Me dê seu ombro’…)”, comenta.
Clássico e irreverente
O uso da língua portuguesa pelos artistas aponta para caminhos distintos. Em Cartola, tem tempero clássico, obedecendo à norma culta, com a esquecida segunda pessoa do singular, tu, e vocabulário erudito. Em Adoniran, tem registro irreverente, copiando a fala do imigrante italiano, com a primeira pessoa do plural, nós, e os verbos no singular, gírias e palavras grafadas na pronúncia popular.
“As letras bem-elaboradas e o refinamento de Cartola refletem o que buscavam os sambistas cariocas para ser aceitos e respeitados. Adoniran não seguia essa linha”, esclarece o cineasta e roteirista Hilton Lacerda, codiretor do documentário Cartola – Música para os Olhos (Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, 2007).
“Adoniran é cronista dos costumes impregnado pela cultura dos imigrantes. Cartola é lirismo, poesia refinada”, completa Sacramento.
Caminhos cruzados
Cartola e Adoniran Barbosa dividiram o palco do Teatro 13 de Maio, no bairro do Bixiga, em 1977, com outros sambistas de renome. Também partilharam parceiros de estrada. Um exemplo foi Radamés Gnattali, que em 1976 fez o arranjo e o acompanhamento ao piano da gravação de “Autonomia”, de Cartola; e, quatro anos depois, com Adoniran, fez a trilha sonora do filme Eles Não Usam Black-Tie (Leon Hirszman, 1981).
Os dois músicos se despediram dos palcos no mesmo local, no Ópera Cabaré, em São Paulo. Lá, Cartola cantou pela última vez em dezembro de 1978 e Adoniran em março de 1979. Nesse mesmo ano, foi lançado pela RCA Victor o LP Cartola 70 Anos. No ano seguinte, a EMI-Odeon lançou o LP Adoniran Barbosa – 70 Anos.
Os shows do Ópera Cabaré foram lançados em discos póstumos, Adoniran Barbosa ao Vivo e Cartola ao Vivo, em 2000, pela gravadora Kuarup. Da vida ambos se despediram aos 72 anos de idade. Cartola, em 1980, vítima de câncer; Adoniran, em 1982, de enfisema pulmonar. Os dois foram fumantes.


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